06/02/2010

As Orquídeas

Gostava das coisas simples, não porque não fossem vistosas, aparatosas, não por timidez ou receio de dar nas vistas, mas apenas por condizerem com o seu estado de alma. A simplicidade na medida da necessidade, em tudo: na roupa, nos adereços, no rosto, nos gestos, nos alimentos, na forma como ia alinhavando os dias que se lhe ofereciam de braços abertos. Nas palavras! Substantivos sem muitos adjectivos. Adjectivos q.b., que quem bebesse percebesse logo, ainda que o significado de uma ou outra palavra se escondesse no interior de um qualquer dicionário, esquecido da boca dos homens, à espera de ser descoberto. Para perceber uma palavra desconhecida, nem sempre é preciso conhecer o seu significado. Basta sentir o contexto e, então, a palavra abre-se dentro de nós, num desabrochar quase perfeito.
Costumava semear palavras singelas no seu jardim, aninhado num viçoso manto verde, abraçado por buganvílias brancas e amarelas. Nua, com os longos cabelos brancos a cobrir um corpo perfeito, de setenta anos, plantava cada palavra com o mesmo carinho de quem trata um bebé indefeso. Cumpria este ritual diário despida de tudo o que era supérfluo, em serena comunhão com a ordem natural das coisas.
Só ao atravessar o começo das convenções, a ombreira das traseiras da casa, se cobria com um vestido de algodão, calçando um par de sapatos rasos, que permitia à planta dos pés casar-se com cada superfície que palmilhava. Ali, dentro de casa, era esta nudez vestida a que se conciliava com os olhares das fotografias, dos quadros, com a presença das memórias em cada recanto da sua vida.
Hoje, sabia que seria o seu último dia de jardinagem. Não mais cultivaria palavras sedentas de terra, de minerais, de água. Não mais veria o reflexo do seu corpo nu sorrir nas tranquilas águas do velho fontanário.
Quando transpôs a ombreira das convenções e viu as orquídeas que as suas palavras haviam apascentado, beijou as lágrimas de orvalho que escorriam saudosamente das belas flores. E transformou-se ela própria numa palavra, na justa medida das necessidades: obrigada!

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