06/03/2014

percursos



A maior viagem que podemos fazer na vida é aquela que se faz dentro de nós próprios, ao longo do tempo. É a viagem em que percorremos todas as tonalidades do nosso caráter, as escuras, as cinzentas e as mais claras; em que conhecemos o pior e o melhor de nós; em que pomos o acento tónico fora de nós e ou dentro de nós; em que pensamos, sentimos, agimos; em que amamos e odiamos... é uma viagem e peras! Quando nos deixamos ir, o nosso caminho revela-se com nitidez e clama por passos decididos. Quando arrepiamos caminho, há sempre maneira de voltarmos a ele, mais tarde ou mais cedo, quer queiramos, quer não. Todos os dias fazemos opções, escolhemos alternativas dos segundos que podem vir a preencher o nosso futuro, e desenhamos uma estrada que se vai perfilando no tempo e no espaço, que preenchemos como se de um desenho se tratasse. Vamos completando espaços vazios, alterando espaços já preenchidos, fazendo descobertas inenarráveis, e crescemos, e somos já diferentes do que éramos ontem, e preparamo-nos para o amanhã, conscientemente, inconscientemente...
O despertar das consciências, a tranquilidade que nos é oferecida com as coisas mais simples e singelas, um sorriso, um afeto, um afago, um beijo, o retorno à meninice, a procura dos braços que oferecem um refúgio para substituir um amadurecimento demasiado rápido, ocorrido antes do tempo. E percebemos, por vezes, por que razão sentimos coisas, a causa delas, ainda que muitas não tenham qualquer motivação. São assim apenas porque sim! Quando fazemos descobertas, abre-se todo um novo mundo, novos horizontes que se espraiam para lá da dor, da escuridão, do sítio onde nada de bom se sente... Como se a alma encarquilhada se robustecesse e ficasse viçosa, como as flores e plantas cheias de orvalho matinal.
Quando percebemos que estamos no nosso caminho, conscientes dele, o proveito que tiramos de tudo é mais intenso, mais colorido, faz mais sentido.
Não sei por onde me levas, mas sei que quero ir por aí. É mais quente, mais tranquilo, e faz-me sorrir...

30/07/2012

os caminhos

percorremos os veios de vários futuros possíveis quando cogitamos sobre o local situado daqui a uns segundos, mais além do que apenas aqui e agora. nos fragmentos suspensos de luz cristalina que envolvem as palavras que brotam de nós em silêncio há qualquer coisa - como dizê-lo? -, um afeto que não se percebe muito bem, mas que poderíamos fazer equivaler a uma qualquer espécie de amor. são as existências que podem vir a ser e a acontecer. são meros momentos, mas eles definem cada traço do nosso passado e do nosso presente. são as escolhas que fazemos em cada hora, conscientemente ou não! os laços, os afetos, o amor, os amores. por mais racional que uma letra possa querer mostrar-se, tudo o que ela é não passa de amor, porque não há mais nada que importe verdadeiramente para além disso. importa o calor que geramos com um olhar doce e fugaz, o sorriso que provocamos quando fazemos nascer um brilho especial dentro de nós, o sossego do infinito deitado sobre lascas de paz de cada vez que te amo, em cada momento que vos amo.
inquieta saber que essas escolhas podem levar-vos para longe ou trazer-vos para perto. o cálculo a par do caminho não parece combinar com o calor dos afetos. mas os passos impetuosos também não são a certeza de nada importante. exercícios ferozes de ligações acústicas preenchem o espaço delicado que nos envolve, a teia de calor que nos une. como a eletricidade estática, criam um pano de fundo perturbador da sequência infinitesimal do amor, como se tivesse de ser assim, como se fossemos capazes de discernir o calor apenas deste modo. perturbar para fazer ver, deixar de ter para saber quanto vale. escadaria interminável. ilusão ótica que nos faz subir ou descer. e somos obrigados a ir a algum lado? não podemos quedar-nos num canto, em silêncio, até que passe, até que finde? temos mesmo de ouvir os sinos trovejar e a chuva a regar as nossas temperaturas num quadro fantástico de ilusionismo realista? entre o começo e o agora, já passei por tantos locais diferentes... em alguns, encontrei tanto calor, tanta ternura, que nunca imaginara ser possível neste quadrante do universo. sustentáculos da respiração das pedras, do sangue que nos percorre, da alma de que somos meros guardiães. cuidai de saber que o amor se aprende e se constrói, e que as fragilidades que aparenta possuir nos dias em que o inverno nos colhe nas suas asas, mais não são do que as paredes-mestras dos segundos que escolhemos percorrer.

o lobo

movia-se como um lobo, por entre as multidões de rostos multicolores que o circundavam em cada instante. não tinha alcateia. por opção! queria correr todas as estepes que pudesse encontrar. só quando o mundo já não tivesse outro canto virgem de amparo para lhe oferecer, que reclamasse os seus cuidados, é que retomaria o curso natural da vida impresso nas suas partículas mais ínfimas. isso podia nunca vir a suceder, mas não era coisa que o preocupasse neste momento da sua existência.
agora, tinha sonhos a cumprir, sorrisos de crianças para colher, plantas para regar. era o suporte de uma complicada teia de afetos, o sustentáculo de um intrincado novelo de necessidades comunitárias. atuava onde normalmente faltava sempre alguém, alguma coisa. onde a falta era palavra constantemente presente. onde a necessidade era o estado mais evidente! onde a nudez de afetos o faziam duvidar da humanidade de todos nós, da omnipresença de um Deus que era suposto estar de vigília, atento... ainda assim, acreditava Nele. porque já tinha vivido demasiado, já tinha visto muito e a vida não podia ser sem Ele! e gostava de ler os Evangelhos, com a mesma fome de quem gosta de devorar os textos literários abundantemente produzidos e editados nos nossos dias.
quando estava só (embora nunca estivesse verdadeiramente só), agarrava-se à guitarra e através dela entoava toda a extensão da sua alma. sisudo, apenas lhe conheciam sorrisos aqueles que ele raramente deixava que se aproximassem. não raras vezes, refugiava-se dentro de si, como se em luto de um passado doloroso que não queria que reaparecesse, com se em busca de complementos do que quer que fosse que conseguissem reunir os fragmentos em que se dividira a sua pessoa.
movia-se como um lobo, por entre a vida que o trespassa a cada instante. sentia que assim conseguiria enganar a solidão imensa que parecia querer tragá-lo de uma só vez, apartá-lo dos seus entes queridos.
movia-se como um lobo. a sua alcateia era a vida. as suas estepes, o mapa de todas as mãos que o percorreriam para nunca mais o esquecer...

sem saber

são as tuas mãos que procuro no sangue quente que me percorre, mas ao tentar alcançá-las, foges para local distante, para um sonho que não tem fim, para um tempo em que eu própria duvido de mim. os teus olhos de mel beijam-me os lábios e perdem-se no fio das horas revoltas. dois barcos em alto mar. e a tempestade que nos invade. chuva densa e fria onde os nossos corpos se procuram às cegas. fazemos amor. sem saber, somos já labaredas.
aqui tão longe, tu estás perto. ondulas, magnético, sobre os meus poros. perdi-me. perdi-me em ti.

13/06/2012

o treino

o violoncelo parou de tocar, filha...
deixas as tuas cordas vibrarem,
porque o amor que tocas
alumia o meu dia.
amo-te.

Profundamente Eu!

Um girassol gigante disse-me:
-o que procuras?
Não percebi bem a pergunta, mas também não retorqui. Ouvi de novo:
-o que procuras?
Como se a resposta pudesse trazer-me uma mão e um caminho, qualquer que ele fosse!
O caracol que escorregou pelo girassol sorriu-me, dizendo:
-descontrai. tudo se recompõe a seu tempo. vive sem culpa e sem medos. ergue a cabeça. os teus inimigos são os teus melhores amigos. obrigam-te a rever posições, a olhar para dentro, a aprender.
Tudo muito bonito para uma sessão de psicanálise, que não me apetece, sinceramente! Que tudo se recompõe, sim, eu sei. Mas dispenso mais hipocrisia de pessoas que vivem a fingir, porque foi assim que foram ensinadas. Fazem da vida um palco e fingem umas com as outras e num certo dia, viram as costas, e continuam a fingir com outras e mais outras, numa infelicidade crescente de quem está sempre só e não aprende nada desta vida, mas acha-se dona da verdade e de todas as virtudes... Coitadas! Fingem e acham que é assim que deve ser. Cada um é livre de fazer desta vida o que quer, mas passem bem ao largo que aqui já não há vagas disponíveis!
Ergue-se uma vaga gigante que transporta uma barca. E da barca espreitam umas barbas brancas enormes e um sorriso macio e sedoso. O que diz é o silêncio, aquele que venho escutando há tantos anos, e que fez mais sentido do que todas as palavras que ouvi até hoje. Vou embarcar e aproveitar a viagem.
Profundamente Eu!

03/04/2012

indizível

dizer o silêncio
no auge da noite
no nó cego das trevas
na sombra parda,
dizê-lo com medo
de reaver o calor
de um amor fraterno
por um instante,
dizer-te sempre
em rodopio constante
em gritaria estúpida
renasce, renasce,
dizer-te mil vezes
sem qualquer ardil,
dizer-te apenas
por egoísmo,
dizer-te com lágrimas
sem sabor a nada,
dizer-te e dizer-te,
dizer-te só a ti,
dizer-te vezes sem conta,
dizer-te outra vez
como se pela primeira vez...
dizer-te cá dentro
até me doer
o espaço que guardei
para sobreviver.

10/03/2012

tinta de romã

se hoje o meu sangue é quente, tu sabes...
lábios carnudos e pétalas violetas,
tons graves e uma sirene de nevoeiro,
lençóis de seda e mel anizado.
se hoje me meneio no teu rosto, tu sabes...
os dias ausentes de nós,
grávidos dos beijos silentes,
na capa do livro sem título.
folheia-me ao sabor do outono
e escreve em mim o nós,
ou o tu e eu,
como queiras...
inscreve-nos no âmago de qualquer coisa
com a tinta colhida
na lágrima de um bago de romã.

sonho

dança de lobos.
crepitam as mãos.
fecham-se para o sono
nas horas incertas.
ouve o molhado
das superfícies.
boca voraz.
engolidos.
as luzes de néon
e o silêncio da noite.
onde está
o teu sorriso?

memória enrugada

dedos que fiam e tecem.
aranhas sem seda.
engelhados...
cascas de clementina
e um perfume adocicado.
um copo vazio enviesado
no tampo de madeira tosca.
rodas de bicicleta,
violetas com pontos amarelos.
um quadro,
uma natureza morta.
e a memória enrugada
dos teus dedos
no piano.

08/12/2011

oração

peço-te, por tudo,
um novo mundo,
um novo dia,
um novo caminho,
e o calor das mãozitas
que me afagam a face
em cada partícula
que me sustenta
o corpo na alma.

imagética

Há momentos na vida em que apetece começar tudo de novo, oferecer-nos uma segunda oportunidade, mesmo que não dê certo, mesmo que volte a magoar, a desiludir. A vida é uma viagem fantástica! O meu campo está cheio de flores exóticas, amendoeiras em flor, oliveiras prenhes. A luz alumia bem alto. Que saudades do cheiro do mar entranhado na pele, do sabor do sal do mar nos lábios gretados pelo sol, do ar puro da montanha que nos prende a respiração, de cair na neve fofa a olhar para o céu azul, de fazer cócegas e fugir para não sofrer retaliações, de cantar ópera de noite no carro, a caminho de nenhures sob o negrume do céu. Que saudades de ser criança!
Por que será que não quero crescer?

18/11/2011

não quero a verdade.
não quero a mentira.
só o calor dos teus lábios.

Ámen

fecha os olhos e sente,
sente os nós de garganta,
o olhar triste e o peso dos dias,
sente a cor cinza do horizonte,
o negro do carvão que palpita,
as unhas cravadas na carne,
o estômago colado em asfixia,
sente a dor, a apatia, a indiferença,
a raiva, a impotência, a impaciência,
a desigualdade, a injustiça, a sobranceria.
agora, abre os olhos e vê o que podia ser.
com respeito, transparência e rigor,
competência, esforço e vontade,
humildade, verdade e coragem,
todos no mesmo sentido,
todos em sintonia.
Ámen.

17/11/2011

portuguesa

por amor
por dever
por orgulho.
pátria e mátria.
não vou desistir de ti.
não desistas tu também de mim.

16/11/2011

medo

a perigosidade da pequenez,
o afunilar do pensamento...
dormem na palavra medo
inscrita na contracapa do silêncio!

28/10/2011

ímpetos salgados

perdi as lágrimas na espuma
nas ondas nas algas na areia.
o mar não nasce nos olhos,
mas na força de um peito vivo.
não há vazante, nem enchente;
aqui, apenas batem marés vivas.

quando um olhar

foram os teus olhos, sabias? a intensidade do teu olhar sobre o meu. não mediste forças. não me possuíste. não me violaste. apreciaste-me devagar. lentamente. degustaste o sabor dos meus olhos. fizemos amor. percebeste isso? naqueles segundos que duraram minutos, que duraram horas, que duraram dias? nunca tinha feito amor assim. e gostei! gostei muito! gostei tanto! foram os teus olhos. a culpa é toda dos teus olhos...

ecos

ecoas cá dentro
vezes demais.

já não me lembro
como se sonha.

vives em mim
há quanto tempo?

faz-me sorrir
e ouvir a voz
do teu sangue.

01/10/2011

campo magnético

dá-me a tua mão. está quente! o que sentes na minha? o percurso dos dias que estão por nascer ou o gelo daqueles em que te deixaste morrer? segura-me com força, abraça-me, encosta a tua cabeça à minha. não digas nada. fica assim. assim, como estás agora. sossegado, meigo, penetrante. a tua presença é tão doce, é tão boa. gostava de ficar assim eternamente, imune à passagem dos tempos. o teu calor... está na hora. vamos escrever o resto das horas que nos faltam. alinha-me com o universo e dispara-me sobre a face da lua. eu sou a brisa que te beija o rosto e a luz que germina no teu seio. eu estou em ti e sempre estive. sou aquele pulsar que não sabes explicar, a memória que não consegues apagar. as minhas raízes nutrem os meus bens mais preciosos, e as nozes, o mel, os beijos que nascem em mim afagam cada um dos meus dias. doce veneno.

essa coisa estranha

magoa, sustém-nos a respiração, molha-nos os olhos apenas porque sim, faz disparar o ritmo cardíaco, fecunda a imaginação, apodera-se de nós, dá-nos apetrechos para perdoarmos, faz-nos ver o que mais ninguém vê, conduz-nos por caminhos acidentados, que nem sempre são os mais óbvios, tranquiliza-nos, faz-nos sentir especiais e únicos, preenche os nossos dias com magia, desenha sorrisos e pequenas rugas de felicidade, oferece-nos um sentimento de pertença, de importância, dá-nos vida...
essa coisa estranha, que nos fomenta tanta contradição, uma lágrima alegre, um sorriso dorido, onde o gelo derrete e o sol é diferente todos os dias, onde a lua nos abraça, esse lugar sem mapa, esse canto encantado, essa escala musical que nos percorre e arrepia, que desfia um olhar de cada vez, essa manta quentinha, macia, esse doce aveludado...
é mesmo estranha!

27/09/2011

letras

sol de Outono,
não me deixes ser Inverno...
não me deixes ser Inverno...

03/07/2011

silhuetas

o que queres que te diga
se é no silêncio que se movem
as palavras que habitam
a sombra dos meus dias?
se olhares para os meus olhos
verás tudo o que tenho para te dar,
te dizer, te oferecer.
não sou mais do que isto,
não sei mais do que isto:
uma mão na outra,
um sussurro no vento
uma lágrima teimosa
um beijo no rosto
uma memória futura...

15/06/2011

crisálida

ontem, era menina. só menina. quero morrer ontem. já chega! amanhã, quero ser além. não aguento mais as delicadas teias que envolvem os meus gestos, o meu pensar, as palavras que deixo a pairar no ar. quero deitar-me ao ar livre, de preferência, à chuva sobre um qualquer tronco velho curvado perante a minha nudez e lascívia. e à noite! quero vestir-me despudoradamente, com os seios bem marcados sob um decote indecoroso, de ancas bem vincadas a segurar a saia que mostra apenas meio joelho, de saltos altos a projectar-me para o céu, como se estivesse numa estação elevatória a caminho do pecado. só o rosto não tem pintura nem disfarces. tenho a cara lavada, harmoniosamente estruturada sobre um corpo ardente. quero rir-me sem cuidado, sem medo de cair para trás, sem receio do ridículo ou do risível (como teorizou Kundera), estar-me nas tintas para a pequenez das cabeças intelectualóides sob cujo crivo passa toda a normalidade banal que grassa por aí, com palavras rebuscadas e sem sentido, mas que todos aplaudem, precisamente por não perceberem nada!
gostava de deixar o casulo, de nele abrir as fissuras suficientes que me permitissem espreitar cá para fora, que me deixassem ser mulher! ah, como o fogo queima impiedoso as minhas entranhas...

sabor a sal

a vida é um mar de promessas e, quando menos se espera, um novo rumo aguarda-nos, inteiro! está ali, à nossa espera. chama-nos a sorrir. sem pressas, sem angústias. por que levamos tanto tempo a decidir? de quem temos nós tanto medo? que magoe? da solidão? do engano? patetas! a vida é isso mesmo. conjugar dos contrários numa mão e reencontro connosco na outra. ah, sedução da alma... esta vida faz-me perder a cabeça. sorri-me nos olhos e sussurra-me aos ouvidos:
«não tenhas medo. vem. deixa-te ir. deixa-te ir.»
a vida está a seduzir-me e eu estou a ficar apaixonada. como gosto de viver, meu Deus! como gosto! vou perseguir sorrisos com a fúria das tempestades, até ficar exausta e não conseguir mais do que deixar-me cair no chão, de sorriso estampado nos lábios. quero ser criança até ao final, até ao desagregar de cada átomo meu nas mãos do universo.
«não tenhas medo.»
diz-me a vida a sorrir... sacana! como mexe comigo! como adoro viver!

31/05/2011

sei-te

sei-te
sem o saber,
porque a pedra
chorou pétalas
e a água
pariu terra,
sei-te
apenas,
porque a lua
se desfez
e o gelo
aqueceu
o teu sangue,
sei-te
em cada gesto,
e sei-te
para sempre.

seiva

e se, porventura, as nossas
bocas se encontrassem nas
asas da borboleta que embala
o meu sono?

e se, por acaso, as nossas
bocas se tocassem em sopros
de clarinete despido
da noite?

as nossas bocas

generosos veios
por onde corre
a seiva primeira

20/04/2011

orquídeas

...esquecidas sobre um banco de
jardim, as orquídeas choram
as sonatas que ainda dormem
nas tuas mãos sem acordes...

Negra

Negra é a tua alma,
A palavra proibida,
Eu, sou ébano cintilante,
Negra é a tua voz,
A vergonha que te cobre,
Eu, sou chocolate ímpar,
Negra é a tua doença
E a falta de inteligência,
Eu, sou aroma de café,
Negra sou eu e não tu,
Pois ser negra é um orgulho,
Distinção que não mereces!

vazia

cortei-me em duas rodelas
para ver se dava sumo,
espremida, não dei nada,
estava seca e enganada.
hoje, queria apenas escrever o silêncio
e assim ficar contigo no limbo...

pessoas

a noite abraça a cidade,
mas deixa ao relento
os corações sangrentos,
desdobram-se mantas,
caixas de papelão,
no resguardo da solidão.
não procuram nada
na miséria humana
que os comeu e mastigou.
aninhados no limiar
da loucura e ditadura
da nossa indeferença,
não gritam nem choram.
já desistiram há muito
de fingir que cá estão.
estou cheia de vergonha
de não fazer nada
de ficar calada...

07/04/2011

meia-lua

pendurado na meia-lua
estava um lindo pirilampo
que não sabia se a lua
era um C ou era um D.
cantarolando baixinho
perguntou o pirilampo:
-ó lua, que letra é a tua?
És o C ou és o D?
encantada com a voz
do meiguinho pirilampo
disse a lua brincalhona:
-dizem que sou mentirosa.
quando cresço sou o D
e decresço sendo o C,
mas mentirosa não sou,
sou é misteriosa...

06/04/2011

matéria-prima

se somos a soma
das nossas vivências,
se somos o fruto
de um tal produto,
vou desagregar-me
em dois tempos,
tirar cada peça
e cada engrenagem,
reduzir-me ao início
antes da forja,
antes do fogo,
antes do sonho.
quero saber
do que sou mesmo feita!

Avé Maria

Avé Maria
cheia de graça,
o Senhor é convosco...
continuava a cantilena em uníssono
ao abrigo da meia-luz da nave central
num hipnostismo compassado.
uma tosse seca lá ao canto
de um velho muito velho
de quem cá anda já há muito,
uma lágrima no rosto da mulher
quebrada pelo desgosto
da partida que a vida lhe pregou,
um grito abafado da criança
que alheia ao ritual circundante
procura o gato que acabou de passar.
...bendita sois vós entre as mulheres
e bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus...
uniam-se as vozes entrecortadas pelo silêncio
quais finos fios tecidos em tapete de seda
amparadas pelo eco devolvido pelas paredes.
um aperto de mãos do jovem casal
junto por Deus há apenas um ano
num dia roubado à Primavera,
o sussurro de um pai
que busca na sua crença
o retempero das energias gastas,
um suspiro na cadeira de rodas
do homem que já só consegue andar
em sonhos de tempos idos.
...Santa Maria, Mãe de deus,
rogai por nós pecadores,
agora e na hora da nossa morte...
a teia de sentimentos nascida da reza
acrescentou nova gota de orvalho
à pequena flor amarela
que acabava de despontar
no sopé das escadas da Igreja.
...Ámen.

crianças

há lá coisa melhor
que a ternura de um olhar,
que um sorriso cheio de esperança,
que a alegria que irradiam?
há lá coisa melhor
que o amor incondicional,
que um seu abraço forte,
que a verdade que transpiram?
há lá coisa melhor
que o carinho desinteressado,
que a vivacidade reinante,
que os mimos que nos dão?
há lá coisa melhor?

14/03/2011

feridas de sal

ainda me lembro das mãos do meu pai curtidas pelo sal e queimadas do sol. descalço, magro, seco, manuseava as redes de pesca com mestria. o silêncio não era duro, mas suavemente entrecortado pelo marulhar da água salgada. o estômago colava-se muitas vezes em súplica, mas ele nunca se queixava.
hoje, não terias orgulho em mim. aceitei fazê-lo. propôs-me dinheiro em troca. parecia tão feliz quando estava a pintá-la com os netos. retrato de uma família feliz...
não me arrependo, sabes? aprendi muito. e cresci. o ser humano é curioso. somos uma imensa planície por descobrir, um mar de águas tão turbulentas quanto calmas.
estou cansado, agora. vou fechar os olhos. a chuva bate na janela do sótão. incessante.
e volto a ver as tuas mãos, pai. reencontro-me nesta imagem e não sei o que quer dizer. feridas de sal. como se fossem rugas, sulcos profundos. o sol. espera por mim...

Ana

com uma pequena tatuagem de um colibri sobre o ombro direito, desnudo e liberto da grossa camisola branca de lã com a gola arredondada, que fazia lembrar a boca de um vulcão, Ana passeava o seu corpo sobre os passeios mal iluminados e escondidos dos bairros residenciais circundantes; meneava-se sobre os saltos altos de onde jorrava um par de pernas escanzeladas, adornadas por meias de vidro que terminavam onde começava a curta saia axadrezada. os cigarros que consumia avidamente não chegavam para lhe roubar o frio dos ossos, nem o torpor da alma.
«preciso de beber um copo.»
estava disposta a vender-se por um pouco de calor. e por cigarros. não lhe importava o dinheiro, por uma vez que fosse. mesmo que o estômago estivesse vazio há demasiadas horas. mesmo que a droga lhe faltasse no cérebro para poder continuar mais um pouco.
«nem um gajo aparece!»
e a véspera de Natal até costumava ser boa, mas naquele dia não conseguia perceber o vazio de gente. não tinha um ar andrajoso, embora também não enchesse o olho a alguém sem a junção de mais qualquer coisa - um gesto, meia dúzia de palavras, um convite explícito. os cabelos compridos ofereciam-lhe um ar adolescente. tinha um rosto anguloso, mas bem estruturado, assente sobre um corpo franzino,
farta de martelar a calçada com os saltos altos onde se pendurava, endireitou-se, encostou a carteira coçada e gasta ao peito com brusquidão e meteu-se a caminho em direcção a casa, onde não a esperava qualquer Natal, mas apenas um dia 25 de Dezembro, como outro qualquer, com o mesmo vazio no estômago, com a mesma ausência de lágrimas de sempre, onde os dias não tinham o atrevimento de ser diferentes, por uma vez que fosse.

19/02/2011

por instantes...

o cheiro a madeira e os estalidos do palco invadiam-lhe os sentidos.
um, dois, três. um, dois, três. um, dois, três...
pirueta atrás de pirueta, as tábuas de madeira do palco gritavam vida com cada gesto que libertava. o suor escorria pela testa, beijava ao de leve os lábios e prosseguia acariciando o pescoço numa dança de sensualidade pura. o ar deslocava-se num vaivém voluptuoso com a constante abertura e fecho circular dos braços, o rodopiar da cabeça, primeiro agressivo, depois macio, com o trautear das pernas e dos pés que beijavam violentamente o chão.
harmonia pura! comunhão com Deus. vida, Vida, VIDA! não existia mais nada naqueles instantes. só a fusão com o todo, as vibrações da música que tocava dentro de si, assim, inusitadamente.
rompia o silencio das sombras. continuava incessante. e o cheiro a madeira que lhe invadia as narinas. e o cheiro a madeira entranhado na carne. e os estalidos crepitantes que reclamavam mais, e mais, e mais.
quando deslizou sobre o palco, depois de fazer uma espargata que rasgou o final da música calada, deixou-se ficar em comunhão com o palco, de rosto adormecido no seu colo, com os lábios a tocar ao de leve os poros das tábuas, como se o palco fosse o amante das horas incertas, o companheiro dos seus segredos mais íntimos. os nós dos dedos. os nós da madeira.
acaricia-me os cabelos.

já não te amo

queria publicar o texto, mas em braille. seria apenas acessível aos que não faziam parte do seu círculo, aos leitores mais lúcidos. aos que teriam de utilizar o tacto para sentir todas as matizes e tonalidades desmaiadas sobre as folhas perfuradas. o toque. e as letras. entrelaçados nos sentidos mais íntimos das páginas em branco da sua memória, gasta pela repetição de acontecimentos surdos de si próprio.
«tu não o poderias ler, a não ser que aprendesses braille. mas cega como és, duvido muito que alguma vez apreendesses o alcance das linhas ali marcadas a ferro e fogo. falta-te a vontade. ou é a mim que me falta lucidez...»
(ela, distante, a dormitar, sem perceber nada do que ele estava para ali a ruminar a meia-voz)
«estarei a ser arrogante?» - interrogava-se.
o que ele sentia era aquela não pertença sem nome dos que se sentem vazios nas águas de uma solidão desmedida, embora rodeados de gente viva, de afectos, de palavras, de gestos, mas sós, sempre sós, sempre... o rodopio das imagens, das cores, dos sons, como se fosse desmaiar a qualquer segundo, como se o tempo fosse diferente para ele, para o seu exíguo espaço, para o seu corpo extenuado de ausências, de alheamentos da vida uterina.
«só com os teus dedos conseguirás perceber este aperto, os nós na garganta, as lágrimas retidas nos canais lacrimais, como se entupidos de uma estação atarefada em esquecer-se das folhas mortas.»
sim, ia publicá-lo apenas em braille. estava decidido. não por consideração para com os cegos, não para causar sensação, mas por já não querer saber de nada. e por, no seu íntimo, estar convicto de que entre eles havia um arrazoado de nós que há muito havia deixado de fazer sentido, que não mantinha a balança equilibrada quando contraposto aos dias por chegar. nós que queriam libertar-se dos cabos...
«como dizer-te que já não te amo?»
ela nao iria perceber. ainda que ele lhe mostrasse o texto. ainda que ela aprendesse braille. ainda ontem se beijaram e abraçaram com tanta ternura depois de fazerem amor... mas ela não viu que já não era ele quem ali estava. era só um corpo emprestado. os corpos não se pedem emprestados quando ainda há vida. e para estar vivo não é preciso um corpo. basta sabê-lo!

05/02/2011

especiarias

o beijo que me deves
quero-o a saber a canela,
com um toque de baunilha,
o beijo que se segue
tem de ter pimenta preta,
cor de aniz e açafrão,
o beijo que sela o grito
é pintado de erva-doce,
menta e gotas de limão,
o beijo que me pedes
só vai temperado com paixão!

proclamar o amor!

proclamar o amor
não é ser piegas
nem sentimental
e muito menos banal,
é bater as asas ao vento
cortar a crista das ondas
mergulhar em espiral no ventre da Terra!
proclamar o amor
não é ser inferior
nem texto reduzido
ou despido de sentido,
é ser diamante em bruto
ter são atributo
alma mergulhada no sangue em chama!
proclamar o amor
não é ser embalagem vazia
e fitas de cetim enfeitada
ou mero pintalgar cor-de-rosa,
é cortar as redes entrançadas
e dançar no trapézio a valsa
na noite mais negra e escura!
proclamar o amor
não é dar à luz palavras bonitas
de cor carmesim vestidas
mas que voam para nenhures,
é oferecer ao Mundo a nossa carne
e dar a beber o nosso sangue
até nos esvairmos por completo
nas mãos de quem quer que seja!

19/01/2011

o outro lado

olá! chamo-me João, tenho 86 anos colados à pele, alguma saúde sorridente de sobra e um fiel amigo - o Barnabé - que me faz companhia do nascer ao pôr-do-sol. acordo com as lambidelas frescas do Barnabé. já me custa procurar as pantufas coçadas, apesar de estarem sempre no mesmo sítio em que as deixo na noite anterior. o dia começa sem pancadas de Moliére que anunciem promessas de emoção. o tempo passa muitooooooo devagar, com os ponteiros do relógio a atrasarem-se propositadamente, jocosos... o ritual dos medicamentos não sofre sobressaltos.
o silêncio... começa a lamber-me bem cedo e devora-me por completo lá pela hora do almoço, quando me lembro que tenho quatro filhos e sete netos, sempre demasiado ocupados para me ver ou telefonar.
à tarde, gosto de ouvir rádio com o Barnabé, para não pensar em engolir as caixas de comprimidos todas de uma só vez.
«e os comprimidos ali à mão de semear, tentadores, tranquilizadores.»
fecho os olhos, encosto a cabeça ao cadeirão fofo semeado de borbotos, o Barnabé aconchega-se nas minhas pernas constantemente roídas pela dor e lá acaba por chegar a noite, vazia, sem qualquer oferta de estrelas e lua para estes velhos ossos.
não era capaz de deixar só, ao acaso, um amigo leal como o meu!
aqui, sou só uma história... mas aí, sou o outro lado de si!

nada para dizer


não, não tenho nada para dizer. só quis aqui vir e aqui ficar... só um pouco... deleitar-me no silêncio amargo das esquinas fugidias. pedras, pedras pesadas que magoam, não sei bem o quê. nada há para amachucar. não há mais nada! nada! tudo me foge, em transe nauseabundo. vomito dores que nunca cheguei a sentir, que não são minhas, nem de ninguém. perdi-me de tudo, do mundo, mergulhei no charco azedo prenhe de girinos informes. e o vórtice abre-se e suga-me, e eu quero ir, quero deixar-me ir, comida, engolida. cuspida pelo lado negro.
devora-me inteira. não deixes ossos, nem carne, nem sangue. olho monstruoso, leva-me daqui, rouba-me ao mundo, viola-me e espanca-me até ser poeira de lágrimas inexistentes.
não, não tenho mesmo nada para dizer...

01/12/2010

o velho

as duas mãos repousam sobre a bengala
mantendo-a naquele ponto, inamovível,
como se ela houvesse de fugir para algum lado,
mostrando apenas as veias salientes que as decoram.
de costas bem direitas, braços distendidos,
com os olhos semicerrados sob a sombra
das abas do chapéu, por detrás das foscas lentes,
olha o rio com aquela serenidade própria
de quem de tempo não tem escassez.
com o perpassar da brisa salgada,
acentuam-se as rugas que têm impressos
todos e cada um dos anos que já viveu,
como se fossem veios de um tronco de árvore.
o já parco cabelo cor de platina esvoaça em desalinho,
acompanhando a dança do fato de linho
cujos passos e movimentos são ditados
pelos ventos que o rio parece cuspir na sua direcção,
como se quisesse ajudar as gaivotas mais incautas.
as ossudas maçãs do esbelto rosto velho
abrigam lábios de profundos sulcos feitos
que hoje descansam da miríade de palavras ditas
a pensar se um dia havia de lá chegar.

11/11/2010

saxofone

alma saxofone.
ecoa no espaço
do palco nu.
transporta-me daqui.
invade, preenche,
suspende-me no sorriso.
ternura sincopada.
sons que acariciam
a sensualidade
das lágrimas
que percorrem
o meu peito.
e é doce
o veneno das notas
nas folhas mortas
onde as mãos deslizam
a vida sinuosa.
rasga o tempo,
mostra-me o momento.
palpita no meu sangue.
sou saxofone.
toca-me,
ouve a música
que choro
por ti...

nem minha nem tua

não sou minha
nem tua,
não sou de ninguém,
sou de quem quiser
doer-me na pele,
beber-me lágrimas
e abrir-me sorrisos.
não sou minha
nem tua,
não sou de ninguém,
sou apenas rota
de quem me navegar,
me trilhar latitudes
e abrir-me monções.
não sou minha
nem tua,
já nem sei que sou,
se espátula em tela,
escopro na pedra,
ou mero barro
nos teus dedos...

sem rumo

solta as amarras
e segue à deriva,
o teu porto seguro
esfumou-se no ar,
preenche o destino
da tua natureza,
pede a cada onda
que te deixe passar,
ondula sensual
sobre o fundo do mar,
lambe as feridas
carregadas de sal,
apunhala a dor
que te mina o norte
e continua a navegar,
começando a desbravar
latitudes novas,
jardins de coral
dos teus olhos escondidos,
o outro lado teu
que apagaste insensato,
a face da lua
que fingias não ver,
a chuva de estrelas
que Deus encomendou,
solta as amarras
e segue à deriva,
um dia verás
que isso é amar...

09/10/2010

não tenhas medo

se tropeçar, receosa, nos teus ramos,
não te recolhas à terra sem mim.
não tenhas medo, eu estou aqui.
enlaça-me nos bagos que me sorris
e ensina-me como se semeia um sol.

o apanhador

caiu a lua circular
na palma da tua mão
e todos os astros estelares
nos nós dos teus dedos
e quando o negro
perdeu a cor
dos contrastes
que nos bebem os olhos
só tu brilhaste
na minha pele
e foste capaz
de chamar o meu nome
rugindo as entranhas da terra e
uivando os cristais de sal
com que me pintaste
nos teus sonhos arbóreos,
só tu te saciaste em mim
na refrega da fome
sem nome,
só tu exististe
porque nasceste
para podar os meus braços,
só tu foste,
só tu...
que andas por aí,
apanhador de astros,
planetas e cometas,
que da poeira cósmica
hás-de fazer o berço
do resto das horas.
ainda tenho aquela estrela
que me deixaste
quando estava desprevenida.

quero-te

quero-te
em minúsculas
E QUERO-TE
em maiúsculas,
quero-te
nas palavras caladas
e quero-te
no gorjeio dos lábios,
quero-te no desejo
que em ti adivinho,
no marulhar da respiração
que não consegues conter,
não vês
como te quero?

Am I?

I lost track of time
While exploring your soul.
Am I guilty, my dear,
Of loving you above all?

tristesse

Tu te rends compte
Que mon coeur
Pleure encore,
Des larmes de sang,
Une pluie vertigineuse
Dans le vide absolu?
Tu te rends compte
Que la nuit est venu
Pour rester à jamais,
Se coucher à côté,
M'envahir jusqu’au bout
Où tout a commencé?
Tu te rends compte
Que ma bouche
Elle est morte,
Que mes yeux
Restent tristes,
Sans un seul sourire?
Tu te rends compte
Du noir que tu as laissé,
Du malheur qui perce
Chaque pore de mon corps,
Sans espoir de guérir?
Te rends-tu compte?

asas-planador

quando é que sabemos? há um dia? um momento? libertinas as palavras cegas e egoístas que pisam, repisam, não querendo saber. indiferença das lágrimas gastas. gestos invisíveis presos nas chamas dos condenados. terra estéril, queimada pelos olhos dos que não estão. fiapos de voz. força ténue. moribunda humanidade dos dedos que tentam alcançar o que a mente escondida tornou pérfido. ínvios os degraus que os pés sugam para não perderem as mãos. toldados. mirrados. quando? quando é? na morte?
abre a força das marés no meu peito, beija-me gentil. deixa-me procurar nas pedras os sorrisos, os sonhos, e fundir-me com o musgo da música que me enche e sustém.
o amor é um estado, conquistado, em cada instante. não se vende. não se adquire. não se engana. só nós...
só uma palavra, sem complementos.
descoberta, na escalada rochosa. asas do vento férreo semeado no começo. asas-planador...

11/07/2010

querido pai

uiva o vento que ainda não nasceu, em golfadas sucessivas, no emaranhado ardente que serpenteia ardiloso no centro da Terra. o crepitar das gordas larvas negras sobre o meu corpo desperta-me do torpor em que o cheiro nauseabundo encaixotado me conserva.
«vou ter saudades tuas pai. não chores!»
as hediondas harpas dançam ritmadas em torno do corpo que tresanda a morte e arrastam os véus transparentes sobre as gretas que se abrem nos lábios, nas sobrancelhas, nas maçãs do rosto. fazem o chamamento. rasga-se a parede de ar e, do lado de lá, vejo chamas azuis carcomidas por escaravelhos vermelhos, moinhos de vento com as velas rasgadas, em ruínas, a flutuar num campo de medos e traições.
«tenho medo, pai! cuida da mãe e das manas. enxagua as lágrimas, meu paizinho. dá-me as mãos, por favor. tenho medo!»
do fedor negro que invade o interior do esquife liberta-se uma réstia de ar fresco, um último sopro de amor. apaga-se a chama da vida. fica fria, a chama, brilha azul e branca. e depois, tudo escurece, tudo se esquece de mim. não mais existo. não para vós!
«deixei de te ver, paizinho. onde estás?»
nesse instante, tudo desapareceu: as larvas, as harpas, as chamas (azuis, não eram?), os escaravelhos, os moinhos...
«e tu também, pai! vou ter tantas, mas tantas saudades, meu querido pai!»

19/06/2010

xadrez

o fim dos tempos
está no início inscrito
e o começo de tudo
espreita altivo do fim
é luz, magia
massa e energia
neste voo alinhavado
sobre tenro pecado
nesta estrada estelar
de sinergias feita
é alma em chama
e zero absoluto
equação incompleta
em sonhos desperta
universo sem fim
cabes no meu bolso
és só ou peão
no xadrez
que Deuz fez?

Beware of the wolves

The nightingale spoke
The words of the Forgotten
On the edge of a cliff
Swallowed by the roar of the sea.
They came with the wind
Cut by scissors of salt
And Mother Nature cried
Their torn apart tears.
In the cradle awoken
They just came to pray:
Beware of the wolves,
Beware of the wolves, they say!

tua

se o tempo não se esquecer, há-de levar-me o corpo queimado de vida, marcado por cicatrizes de instantes felizes, segundos sem igual, emoções rubras e azuis. papoila desmanchada entre os dedos ávidos de terra e pó. sou mera estrada, pedra da calçada.
se o tempo não se esquecer, há-de arrancar-me o sopro da vida com o beijo da morte. e será o beijo mais doce de sempre, mais terno e apetecido.
«esperei tanto por ti! pensava que nunca mais chegavas.»
sei-te do lado de lá. não me perguntes como, mas sei. não foi a estrela, nem a palma da mão. não! és tu que estás impregnado em mim, como um perfume que não sai. cheiro-te em mim, sabes-me na minha língua, na saliva que liberto só de te escrever.
anjo negro que velas por mim. sabes-me tua. dá-me o beijo da morte. ou atravessa a porta, porque estou aqui, à espera, ausente, presente em ti.
se o tempo não se esquecer, vai comer-me a pele e os ossos, beber o meu sangue e segurar o começo e o fim no mesmo instante. e o brilho será intenso. cegará os homens e os deuses. cegará a boca do espaço e serei, enfim, tua...

08/06/2010

ainda não era o tempo

ainda não era o tempo
de a lua se despir
enquanto declamava
os peixes que ondulavam
no seu ventre macio,

ainda não era o tempo
de o eco distante se libertar
penetrando nos poros sequiosos
das bocas que abriam caminho
ao voo dos girassóis,

ainda não era o tempo
de a alma chorar
estrelas-do-mar e ouriços
enquanto cantava o silêncio
de um amor quebrado no molhe,

ainda não era o tempo
-ouvia-se-
ainda não era o tempo
de as horas não existirem
no entrelaçar de sorrisos
na dança de olhares vivos
no alento de um amor sonhado.

no silêncio

-Não achas que está na altura de fazermos as pazes?
-... (silêncio).
-Estou zangada contigo há demasiado tempo. Cansada de estar zangada. Não me adianta de muito, pois não?
-... (muito silêncio, na penumbra do som).
-Vou tentar não te culpar por mais nada. A culpa é coisa nossa, não é?
-... (breve tartamudear da brisa).
-Dá-me, ao menos, alento. Não consigo encontrar-me em mim. Deixa-me repousar o cansaço no teu colo. Serena-me... lentamente...
-... (a superfície do deserto que serpenteia ao de leve).
-Junta-te a mim. Vem. Tenho fome de espírito. Limpa-me as lágrimas que não caem... não consigo chorar.
-... (breve arrulhar das folhas perenes).
-Dói-me. Ali... no princípio. Fica comigo mais um pouco...
-... (o silêncio cantado é o mais belo dos silêncios).
(conversa com Deus)

ecce homo

o frio cortava o rosto como lâminas afiadas. segurou a gola do casaco para tapar o pescoço. só via os pés e as pernas de outros rostos que não conhecia. de cada lado das ruas graníticas corria um rio de gente, em silêncio, em comunhão com Ele. as velas nas mãos gretadas, geladas. mãos despidas. mãos... abertas. a luz na escuridão. vislumbre de compaixão. queria cuspir a culpa, mas ela não caiu. continuou a andar, acompanhando a procissão. era tarde. noite cerrada. estava cansado. exausto. caminhava com passo cadenciado e seguro num caminho errante que se ia desenhando à sua frente de forma tímida. torrente de calor. espírito materializado. alento. amor. amor. amor. continuou embalado, como se em transe. quando se deitou, percebeu que era apenas humano. podia chorar. e chorou. sem receio, sem vergonha, sem pressas.

25/04/2010

Cotovia

Canta a cotovia
o zumbido das abelhas
sobre pólenes pueris
gastos pelo vento
que puxa o novelo
do saiote que
veste a serra
imersa no sangue
da bola de fogo
que raia no horizonte,
como amantes distraídos
sob o signo de Vénus
ao som do violoncelo
que despe as cordas
em tremor aturdido
num banho de mel,
mosto e chuva,
canta a cotovia
que alegra o meu dia!

texturas

Não sei de mim
quando te ausentas
e com o teu vazio
me atormentas...

risca o fósforo
na ardósia minha...

grito do xisto...

feiticeira...

...filha da terra e dos céus,
macerada no ritual devasso,
explosão de letras lúbricas,
Ísis, noviça do culto...
são suas, as tranças
que decoram os teus ombros nus,
as pupilas que ardem
nas tuas mãos ávidas,
as promessas quietas
que sabes conquistar.
Enche as mãos em concha
com o sopro da vida
e nelas cozinha o fogo na pedra.
Promontório de mil demónios,
estocadas de florete
que reclamam: mais!
Feiticeira... Ísis...
encanta e seduz,
tenta e fascina,
cumpre-se o ritual,
fecha-se o ciclo...
magia cuspida
na esfera armilar.

09/04/2010

não?

vencer a distância que se abre entre um sim e um não é tarefa árdua, pirueta que se veste num trapézio sem rede, uma aposta no desconhecido. podemos partir do não para chegar ao mesmo não, ainda que pelo meio tenhamos feito uma corrida de obstáculos, dado o melhor de nós, superado as nossas próprias expectativas. podemos partir do não para chegar a outro não, surdo das nossas razões, cego perante o esbracejar dos argumentos que cultivámos na esperança de uma colheita generosa, compensadora. mas podemos partir de um não aberto à aprendizagem, adepto da diversidade, pronto para um confronto inteligente e educado, sem medo de se sentar a um tabuleiro de xadrez. seria um não-talvez-não-na-mesma, um não-talvez-não-tão-não ou até um não-talvez-afinal-um-sim. nem importa muito se este não passaria a ser um sim, se a distância que se venceu entretanto voltaria a alargar-se ou se, finalmente, se estreitaria. interessa, sim, que as distâncias sejam apenas etapas a clamar pelo melhor de nós e que um não se limite a representar um desafio onde depositamos os nossos esforços para nos habilitarmos a alcançar o não seguinte...

propositadamente sem título

início do exercício...
deixa-os.
deixa-os falar dos meus textos.
apenas exprimem o exercício do inconsciente no modo como me absorveu.
das palavras encadeadas que as minhas mãos teceram convocará cada corpo os pedaços que lhe faltarem.
trazemos do que lemos só o que nos complementa. livramo-nos do excesso para não pesar mais.
não é na massa que está a essência. a essência está aqui... vês? está na luz das letras.
(escuta...)
final do exercício...

mulher-fogo

intrépidos desejos os que querem rasgar o teu peito no zero absoluto. pedra. fóssil. ausente de ti. como se o tu fosse pronome que importasse na ausência do nós. trepadeira negra e hedionda que chicoteia qualquer cão selvagem que tente abocanhar a tua seiva amordaçada. por trás dos foscos vidros embaciados pela fuligem expelida no parto acrimonioso, há uma pequena chama. é um quase nada, minúscula, praticamente invisível, mas está lá! consome o frugal oxigénio que sobrou do delírio ardiloso. mas arde, vive, não esmorece. apenas se resguarda no pousio. e na pastagem liberta das geadas, a mulher-fogo circundará os sóis semeados no sangue primeiro da boca do tempo... segredando: «ontem, não era. o começo é agora!»

05/03/2010

e acordo...

falésia sem fim. escarpada. negra. laminada. devorada pela aurora da descoberta. traga-me o sono. as gaivotas traçam rotas desencontradas às recordações suspensas nas mãos que ainda não conheço. desliza em perfeita simetria nesta língua corrompida o sabor do sal, das algas, dos líquenes urdidos nos teus lábios. gritas com as mãos em concha. mas eu não oiço. não oiço... perdido no horizonte, sem prelúdio. embaciado pela neblina das incertezas. as aves trazem no bico oferendas aos deuses. o sol lambe-me as mãos, o rosto, os cabelos. incendeia. arde-me. as mãos, sempre as mãos, e um rosto sem ninguém no meu sonho. o vestido que cobre este tronco noduloso esvoaça por entre os afagos marítimos. embalada. no cimo da falésia. a música que ampara os meus ombros, que calça os meus pés de lã grosseira. fulminada. vida que dói e arde nos pulmões.
e acordo subitamente, alagada em suor, a arfar, sem saber muito bem onde estou, se numa qualquer tela surrealista, se nas chamas em que estes lençóis ardem...

Fado Meu

A saudade que mora em mim
veste-se de xaile negro
tem a voz embargada
julga ser pequeno nada,
à beira da falésia
canta toadas de amor
embrulhadas na dor
da ausência tua,
esta saudade é capital
selvagem e animal
de cor de vinho vestida
no meu peito latejando,
arrastada na voz silente
à meia-luz de noite estrelada
verseja nas cordas da guitarra
cada espaço de mim exilado...

In "Nas águas do verso", organizado por João Filipe Ferreira e Pedro Lopes, Edições Ecopy, p. 57

28/02/2010

dedilhar as cordas da memória

dedilhar o pescoço como quem dedilha as cordas de uma guitarra. executante de vibrações no meio dos longos caracóis perdidos sob os raios de sol. os reflexos avermelhados escorrem como flores prenhes sobre a pedra calcária. o calor no frio. o azul no vermelho. fusão dos contrários. plenitude sagrada de almas famintas. silêncios tocados nos olhos pelo fervilhar de ternuras insensatas. nos lábios entreabertos, as tréguas dos desejos outrora beligerantes.
dedilhar a memória como quem dedilha um pescoço. executante de sorrisos nos lábios esquecidos lá ao longe. brilho cristalino de mãos em chama nos ombros que moldam as montanhas à minha frente. a imensidão impõe-se. o sol brilha demais! ofusca tudo. cega-me. perde-me. conquista-me.
«que queres de mim?»
mas o horizonte não traz qualquer resposta. o eco luta para não voltar e agarra-se com unhas e dentes às asas da águia que acaba de passar. e o passado regressa ao seu lugar. e o presente retrocede até aos meus braços cruzados e fechados sob o meu peito. invade-me as narinas e acorda-me.
quando abro os olhos, tenho em mim esta cantilena:
«dedilhar o pescoço como quem dedilha as cordas de uma guitarra.»
suspiro... e sorrio!

21/02/2010

eu dizia-te...

eu dizia-te
que o sonho acontece,
não fosse sentir
que te escapas por entre os dedos
como a areia de um relógio,
dizia-te que quando se ousa... acontece,
não fosse pressentir
que levantas amarras
para navegar os ponteiros que te faltam,
dizia-te (sussurrando...
bem perto do teu peito)
que o fogo foi criado
para arder e...
as mãos...
para explorar os rostos
de cada boca
que nos atravessa
nos ângulos imperfeitos,
dizia-te mentiras e verdades
só para te desfrutar,
não fosse esta avareza de alma
destruir a delicada teia
de fios invisíveis que...
estendeste até mim.
dizia-te
tudo isto,
dizia-te
tudo o que não disse.

In "Os dias do Amor", com recolha, selecção e organização de Inês Ramos, da Ministério dos Livros, p. 361

Ámen

hoje, vou enterrar-te
como se enterram os mortos,
deixar-te inacabado
em suspensão infinita
neste ar rarefeito
do tango que me escureceu,
vou lançar-te ao mar
e cobrir-me de luto,
esquecer-te nos foles
do velho acordeão,
matar-te, com estas mãos,
e chorar toda a mágoa.
hoje, vou virar a página,
beijar os teus lábios mortos,
tapar-me com o véu mais preto
e partir da mulher que já não sou
em busca da que quero ser...

06/02/2010

As Orquídeas

Gostava das coisas simples, não porque não fossem vistosas, aparatosas, não por timidez ou receio de dar nas vistas, mas apenas por condizerem com o seu estado de alma. A simplicidade na medida da necessidade, em tudo: na roupa, nos adereços, no rosto, nos gestos, nos alimentos, na forma como ia alinhavando os dias que se lhe ofereciam de braços abertos. Nas palavras! Substantivos sem muitos adjectivos. Adjectivos q.b., que quem bebesse percebesse logo, ainda que o significado de uma ou outra palavra se escondesse no interior de um qualquer dicionário, esquecido da boca dos homens, à espera de ser descoberto. Para perceber uma palavra desconhecida, nem sempre é preciso conhecer o seu significado. Basta sentir o contexto e, então, a palavra abre-se dentro de nós, num desabrochar quase perfeito.
Costumava semear palavras singelas no seu jardim, aninhado num viçoso manto verde, abraçado por buganvílias brancas e amarelas. Nua, com os longos cabelos brancos a cobrir um corpo perfeito, de setenta anos, plantava cada palavra com o mesmo carinho de quem trata um bebé indefeso. Cumpria este ritual diário despida de tudo o que era supérfluo, em serena comunhão com a ordem natural das coisas.
Só ao atravessar o começo das convenções, a ombreira das traseiras da casa, se cobria com um vestido de algodão, calçando um par de sapatos rasos, que permitia à planta dos pés casar-se com cada superfície que palmilhava. Ali, dentro de casa, era esta nudez vestida a que se conciliava com os olhares das fotografias, dos quadros, com a presença das memórias em cada recanto da sua vida.
Hoje, sabia que seria o seu último dia de jardinagem. Não mais cultivaria palavras sedentas de terra, de minerais, de água. Não mais veria o reflexo do seu corpo nu sorrir nas tranquilas águas do velho fontanário.
Quando transpôs a ombreira das convenções e viu as orquídeas que as suas palavras haviam apascentado, beijou as lágrimas de orvalho que escorriam saudosamente das belas flores. E transformou-se ela própria numa palavra, na justa medida das necessidades: obrigada!

Double Scull

aqui

Rompem-se as águas
pela aurora,
casca de noz
escorrega asinha
no verde-escuro
sedento de luz,
brisa serena
lenço de seda,
mãos calejadas
abraçam os remos,
debaixo da ponte
ecoam as pás,
sulcam as águas
em esforço tenaz,
o slide escapa-se
até à proa,
os remos dão
um beijo fugaz,
o slide dança
até à popa
ritmado e cadente,
os remos viram costas
zangados, cansados,
mas a paixão é louca
e logo procuram
ambos a boca, famintos...
História de amor
compassada,
num barco a remos
projectada,
rasga-se o ventre
do manto molhado!

27/01/2010

um dia na vida de um menino

...queria escrever e não tinha como. nem papel, nem lápis. nem um painel de areia para resgatar ao mundo dos sonhos as palavras que queria entrelaçar com toda a doçura que conhecia. fez um trejeito maroto, enfiou as mãos nos bolsos, e lá foi andando pelo caminho de terra batida, com cheiro a folhas douradas, a coelhos a sair da cartola, a aviões mágicos que rasavam o manto de erva viçosa e, logo no minuto seguinte, alcançavam as nuvens penduradas lá bem no alto. e decidiu que ia escrever mais logo, quando a noite se lembrasse que era hora de começar a sacudir magos e feiticeiras para encantar todos os meninos. escreveria nas estrelas (se o céu estivesse limpo) ou até mesmo no vapor de água condensado colado às janelas (caso o céu não quisesse ser incomodado).
mais alguns passos dançantes e despreocupados à frente, e logo as mãos voaram para alcançar um cão pequenito, que mal abria os olhos, perdido do tempo das mães, no frio ingrato das pedras que conspiravam contra as pequenas almofadas das suas patas. parecia até que ainda não sabia andar... aconchegou o cãozito, abriu o fecho do casaco até meio e, sem pensar duas vezes, enfiou-o ali mesmo junto ao peito, segurando-o com as suas mãos de menino.
claro que, entretanto, já tinha escrito todo um conto fantástico com os olhos na paisagem que se ia abrindo à sua passagem. e recitava-o, de cor e salteado, como se a convencer-se, resoluto, que ia reescrever aquela estória junto da mãe e que ela já fazia parte dos seus próximos dias. até àqueles dias em que, quando deixasse de ser menino, voltaria ao dia de hoje para se reencontrar...

África















aqui

Trouxe na memória o vermelho da terra,
Os poilões que se abrem como os livros,
A quente humidade que se cola à pele,
O pôr-do-sol abrasador que esmaga a linha do horizonte,
As cores vivas que por todo o lado inundam a vida,
Os enormes formigueiros das termiteiras,
Os cotos dos arbustos em praias de criação recente,
O coaxar sem fim dos batráquios pela noite dentro,
A espuma cremosa de um café bem batido,
O gosto das ostras abertas sobre a chapa quente,
Os mangueiros e cajueiros que crescem rebeldes,
O sabor de um bom chabéu à mesa de amigos,
A diversidade cultural que pulula nas ruas,
Os papéis e os balantas e todas as outras etnias,
O burburinho da entrada e saída dos táxis colectivos,
As boleias cravadas em todas as estradas,
A travessia do tranquilo rio a caminho de Farim,
As quedas de água e a força do rio no Sul,
As grossas gotas das chuvas num manto sem fim,
A alegria de um viver diferente.
Trouxe na alma um feitiço, certamente...
Pois cá tão longe ela chama por mim,
Impiedosa, insistente,
Como se pudesse haver um amor assim!

Oiça a declamação do poema, pela voz de Luis Gaspar

17/01/2010
















sobre a laje desfolharam-se as asas do pequeno anjo, de semblante sisudo, adormecido na frieza das lágrimas de pedra. Não estava pronto! Não sabia como ir! O pequeno corpo jazia cinzento em sepulcral silêncio, contrastando com a castidade da aura que lhe estendia os braços e espargia afagos mornos sobre o cadáver. Ardiam-lhe ainda no sangue as bofetadas e os pontapés distribuídos gratuitamente pelo seu corpo, dia após dia, noite após noite, apenas porque sim e por razão alguma. Não sabia que podia voar... ainda! Ecoava no desvão da memória, envolta em nevoeiro e chuva, bem perto, o azedume das palavras proibidas e assassinas com que era vergastado pelo hálito etílico, pelos olhos inchados de narcóticos («A culpa é tua! Sai-me da frente, paspalhão... não serves p'ra nada! Monte de esterco!»). Doíam-lhe mais os impropérios aviltantes que as nódoas negras e os hematomas cirurgicamente esculpidos em cada esquina do seu corpo. Uma das estrelas desprendeu-se da abóboda celeste e planou suspensa no tempo... sobrevoou o pequenito - que se chamava como todos os meninos se chamam - e desfez-se em pó cristalino que fez nascer mágicas gotículas de orvalho nos lábios do pequeno anjo. Não conheceu o amor, mas sabia amar... e pôde voar, voar, voar... anjo meu!
Na lápide, apenas um nome e duas datas, próximas demais para deixar qualquer um indiferente!